"Adeus Velho Chico, diz o povo nas margens"


Os amores impossíveis, causados pela guerra entre famílias rivais, são recorrentes na literatura e nas telenovelas. De Shakespeare aos dias atuais, passando por diversas fases e estilos, eles estão presentes. Mas, nenhum deles foi como Santo (Domingos Montagner) e Teresa (Camila Pitanga). Os coronéis que dominam os mais carentes e controlam a política de suas regiões também aparecem vez ou outra, mas nenhum é como Afrânio de Sá Ribeiro (Antonio Fagundes). O místico e o lúdico costumam despertar a curiosidade do público, mas nunca foram tão poéticos como os mistérios que guardam o rio São Francisco. Tudo isso foi para dizer que "Velho Chico", novela que teve o último capítulo exibido nesta sexta-feira (30), é muito especial.
A trama de Benedito Ruy Barbosa e Bruno Luperi chamou atenção desde o início, para aqueles que se dispuseram a uma proposta diferente de novela. Fora do convencional desde o primeiro capítulo, "Velho Chico" apostou na poesia e na reflexão para contar a história de uma cidade dominada pela influência e poder político dos De Sá Ribeiro, clã que passa a ser comandado por Afrânio, um homem que leva uma vida diferente daquela, mas se vê obrigado a "vestir" o papel do Coronel Saruê, figura que sempre dominou a região. A família vive em guerra com o coronel Ernesto Rosa (Rodrigo Lombardi) e o clã Dos Anjos, o que resulta em mágoas, mal entendidos e sangue.
Ressaltando a disputa entre as famílias e a política feita na cidade de Grotas do São Francisco, a novela chegou ao fim com a resolução de tantos conflitos, sem deixar de lado, é claro, o tom poético que conduziu sua trajetória. Depois de se livrar da personalidade do Coronel Saruê, Afrânio decide se redimir de todos os pecados cometidos contra sua família e o povo da região. Figura símbolo de práticas políticas condenáveis e, infelizmente, bem brasileiras, Afrânio revela ao Ministério Público todos os esquemas que envolvem o coronelismo e a prefeitura de Grotas, entregando listas de políticos beneficiados com os esquemas de corrupção na região. Isso faz com que o deputado Carlos Eduardo (Marcelo Serrado), que havia assumido o posto de Saruê, tenha de fugir com todo o dinheiro roubado dos cofres públicos. Mas, perdido durante a fuga, a seca do sertão dá um jeito de punir o corrupto para sempre.
Divulgação/TV Globo
Afrânio tem seu momento de redenção no fim, quando, ao lado do amor de Iolanda (Christiane Torloni), mostra que se livrou de vez da figura de Saruê e busca o perdão do filho Martin (Lee Taylor), vítima dos caminhos tortuosos cavados pelo coronel. Já morto, ele e o pai têm um encontro de almas para encerrar suas pendências e continuarem com suas trajetórias, cada um em seu plano.
O amor de Santo e Teresa é coroado com o casamento dos dois e, é claro, a reconciliação das famílias, que seguem unidas e contribuindo com a prosperidade de Grotas.
Agora, escrevendo essas linhas, percebo que qualquer resumo que possa fazer de "Velho Chico" diminui, e muito, a imensidão da trama e a contribuição rica que o folhetim trouxe para o gênero. São tantos aspectos relacionados à política, ao meio ambiente e aos relacionamentos humanos, que fica impossível explicá-los em um texto. Nunca houve algo como "Velho Chico".
Falemos, então, das qualidades do folhetim, a começar pelo texto, que soube trazer reflexões importantes ao público sem deixar de lado os ingredientes clássicos da telenovela. Há tempos, sinto falta de tramas com conteúdo, que possam levar o público a um outro lugar através da emoção e da razão. Sem discursos pedantes, "Velho Chico" falou de política, de desenvolvimento sustentável e distribuição de renda, além de provocar o público a fazer reflexões sobre o meio ambiente e o futuro que queremos para o mundo em que vivemos. Cada diálogo, cada vírgula estava ali por um motivo, o que demonstrou cuidado dos autores com o texto.
Nestes últimos capítulos, pegando apenas um espaço curto de tempo e memória, foram inúmeros os momentos emocionantes e especiais da trama. A morte de Encarnação (Selma Egrei), a última conversa entre a matriarca dos De Sá Ribeiro e Iolanda, o encontro derradeiro entre Afrânio e Santo, o acerto de contas do coronel com Martim e o final trágico de Carlos Eduardo são apenas alguns desses exemplos. A sequência em que Afrânio deixa que o rio São Francisco "leve embora" a figura do Coronel Saruê de sua personalidade é uma das coisas mais bonitas que já houve na televisão brasileira.
Divulgação/TV Globo
Grande parte do êxito de "Velho Chico" é responsabilidade do diretor Luiz Fernando Carvalho, que possui um olhar único, não só no Brasil, mas no mundo todo. Através de closes, luz, cor, ângulos de câmera e cortes na edição, o diretor fez chegar poesia ao principal horário comercial da maior emissora do país. Para isso, é claro, enfrentou resistência e percalços, mas nunca deixou de frisar que esse era o trabalho que ele queria apresentar ao público. Misturou tudo: teatro, cinema, circo, televisão, pintura, artesanato, música e cultura popular. O resultado não é nada menos do que excepcional. A mão do diretor também influenciou no elenco, todo muito coeso. 
Não dá para encerrar sem falar na solução encontrada para preencher a lacuna deixada pelo ator Domingos Montagner, morto depois de se afogar no próprio rio que inspirou a novela. Santo nunca deixou de estar presente, graças ao recurso de usar uma câmera subjetiva para fazer com que os personagens interagissem com ela e para deixar o público com a impressão que Santo ainda estava ali... e estava! No fim, uma emocionante homenagem ao ator foi levada ao ar, Nela, Santo aparecia navegando nas águas no rio e, depois, a cena destaca que a alma dele está à bordo do Gaiola Encantado, barco que, na crença dos personagens da trama, leva os espíritos por todo o percurso do São Francisco.
Usando a música "Francisco, Francisco", usada na última sequência da novela, "adeus Velho Chico, diz o povo nas margens". O público é "o povo das margens", que se despede e agradece pela poesia e pelas reflexões que a trama trouxe para o gênero. Quem dera sempre fosse assim... Pensando bem, melhor que trabalhos como esse sejam esporádicos, pois o corriqueiro não deixa espaço para o especial. "Velho Chico", me repetindo, é muito especial.

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